9.12.05

E o mercenário quase nos mata.

Domingo, 02/10/05. Devidamente convencidos pelos palpiteiros de plantão, eu e minha esposa partimos de carro para São Paulo para uma consulta no dia seguinte com o Dr. J., chefe do departamento de neurologia de uma conceituada universidade brasileira e tido como o maior especialista em cirurgia e tratamento de tumores cerebrais do tipo Glioblastoma Multiforme. Naquele dia dormimos na casa de um primo que reside na capital. Nossa consulta estava marcada para as 14hs do dia seguinte e nós levamos todos os exames feitos por meu pai durante o período em que ele esteve internado, que incluíam uma tomografia do crânio, uma ressonância magnética do crânio, uma tomografia de pulmão, ultra-som de abdômen, radiografia de pulmão e vários outros exames clínicos. Este conjunto de exames demonstrava que o tumor na cabeça não era metástase de outro câncer, mas um tumor um único e primário do cérebro.

Pouco antes das 14hs na segunda-feira, chegamos ao consultório do médico. Este consultório ficava em um prédio localizado na região da Avenida Paulista, uma área nobre e cara da cidade de São Paulo. Ao entrar no local, de certa forma, eu antevi o que nos esperava. O consultório era exclusivo do tal médico e, embora não fosse suntuoso, percebia-se facilmente uma decoração cara e requintada. O que mais me chamou a atenção foi o número de pessoas trabalhando atrás do balcão da recepção. Pude contar cinco e não sei se havia mais alguma. Tendo em vista que aquele local era apenas o consultório, este fato, que representa a abundância de recursos, já me deixou com "um pé atrás". Como de praxe nas consultas médicas particulares, paga-se antes e depois é feita a consulta. Eu paguei. Exatos R$450, isto é, mais de US$200. Acho que este valor, para uma simples consulta médica, é caro em qualquer lugar do mundo, principalmente se considerarmos que a consulta dura menos que 1h.

No momento em que falamos com a recepcionista para o fornecimento das informações sobre meu pai e o pagamento da consulta, deixamos com ela todos os exames para que o médico pudesse vê-los antes que nós entrássemos no consultório. Aguardamos cerca de dez minutos e então fomos atendidos pelo Dr. J.. Muito cordial e simpático, ele nos recebeu e, talvez por saber que minha esposa é médica, já no início da consulta confirmou o diagnóstico feito em nossa cidade. Disse-nos que aquele tumor era operável e que deveria ser extraído por cirurgia. Também confirmou a forma de tratamento pós-cirurgia indicada pelos médicos que nos atenderam inicialmente. Foi tecnicamente correto, mas de certa forma distante e frio durante toda consulta. Explicou que estava com viagem marcada aos EUA para a próxima segunda-feira e que, se nós tivéssemos a intenção de fazer a cirurgia com ele, esta teria que ser ainda durante aquela semana. Perguntamos sobre hospitais e ele nos disse que só operava em três, todos muito conceituados e caros. Perguntamos finalmente quais seriam os custos da cirurgia ao que ele nos respondeu que sobre o assunto dinheiro nós deveríamos tratar como uma assistente ou secretária dele. Nos despedimos e fomos falar com a secretária, que gentilmente nos explicou os "precinhos" de ocasião. Eles eram os seguintes: -equipe cirúrgica R$60.000; -anestesista R$5.000; hospital e UTI por nossa conta. Numa estimativa grosseira, o valor total ficaria entre 100.000 e 130.000 reais por cirurgia. Destaco que é por cirurgia, porque é comum pacientes com essa doença serem operados duas ou três vezes antes de irem a óbito.

Saímos do consultório, pegamos nosso carro e começamos a voltar para casa pensando na situação. Por mais que tentássemos, a situação toda não saia de nossas cabeças e de nossas conversas. Falamos e re-falamos cada detalhe da conversa com o Dr. J.. Se nossas análises estivessem certas. É provável que o tratamento todo tivesse um custo entre 700.000 e 1.000.000 de reais, o que é obviamente fora de nossas possibilidades, assim como das possibilidades da imensa maioria dos brasileiros. Não é de se admirar que a grande maioria das vítimas deste tipo de tumor morre.

Algum tempo depois uma luz começou a se fazer presente em nossos pensamentos: Dr. J. é um mercenário! Ele pode ser um ótimo cirurgião, mas não tem nenhum escrúpulo quando a oportunidade de explorar desesperados se faz presente. Este homem pensou, pelo fato de termos vindo de tão longe e de termos consciência da gravidade da situação, que nós éramos uma ótima fonte de receita. Avisar-nos que iria viajar e que, portanto, se nós quiséssemos, ele faria o favor de operar ainda “esta semana” me lembrou muito situações como aquelas em que um vendedor pressiona o cliente da loja dizendo que a mercadoria está acabando ou que vai subir de preço. Por outro lado, em nenhum momento ele nos assegurou um prognóstico melhor do que aquele apresentado pelos médicos de nossa cidade. Ou seja, ele confirmou o diagnóstico, confirmou o prognóstico e pediu um absurdo para fazer o mesmo que os médicos anteriores haviam dito que deveria ser feito e que não salvaria o paciente. Consciente de sua fama de bom cirurgião, tentou nos cobrar um preço espoliante para nos fornecer o mesmo que os outros ofereceriam: a morte em no máximo dois anos.

Depois de dirigir por mais ou menos três horas, paramos para comer alguma coisa e minha esposa insistiu em dirigir porque eu estava cansado e ela, que é uma boa e experiente motorista, preferia dirigir no trecho de estrada dupla que ainda restava. Quando chegássemos aos duzentos quilômetros finais, que são de pista simples, eu, já mais descansado, pegaria a direção novamente para terminar a viagem.
Voltamos à estrada sem, em momento algum, deixar de considerar e reconsiderar cada aspecto envolvido do tratamento e especialmente a experiência que tivemos com o Dr. J.. Aquilo foi nos exaurindo, cansando ao extremo. Uma hora e meia mais tarde, logo depois de entrarmos no trecho da estrada que é de pista simples e onde o tráfego de caminhões é intenso, falei para minha esposa que parasse assim que possível, para que eu assumisse a direção. Não deu tempo. Sem se aperceber do que estava fazendo, em uma curva, por causa da estrada muito mal demarcada, ela mudou de faixa passando a trafegar pela pista oposta. Eu notei e comecei a gritar: “olhe o caminhão”, “olhe a carreta”. Estávamos indo de encontro a um caminhão, que sinalizava com a luz alta incessantemente. Minha esposa não conseguia ver, embora fosse evidente, evidente demais! Aquela situação durou uns poucos segundos e, quando estávamos a uns 20 metros da colisão frontal, ela “voltou a si”, fez um movimento brusco com a direção para a direita, nos tirando da rota de colisão. O carro quicou à direita, depois à esquerda e novamente a direita, cruzamos a frente de dois veículos que vinham atrás de nós e saímos pelo acostamento indo bater em um bambuzal. Quando paramos e ao nos darmos conta do que havia acontecido e verificarmos que não tínhamos nenhum ferimento grave ou evidente, eu pensei comigo: “-um mercenário quase nos matou.” Quase que meu pai, em sua condição terrível é obrigado a nos enterrar. Quase que meus três filhos ficam órfãos, de pais e de avós.
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A descrição acima pode parecer exagerada ao qualificar o aquele médico como mercenário, mas realmente não é. Só para que se tenha uma idéia, o custo total da cirurgia, com equipe, anestesista e hospital, ficou em 13000 reais e o resultado, que foi avaliado pelos especialistas em radiologia, é, dentro do possível, extremamente satisfatório.

7 Comments:

At 12:12, Anonymous Anônimo said...

Discordo da opinião. Ele não é mercenário: apenas explora uma fatia do mercado. Pense bem... se ele cobra isso é porque tem quem pague. Como você observou, isso não é garantia de um bom resultado. Você o conseguiu por muito menos.

 
At 13:51, Anonymous Anônimo said...

Mercenários eram soldados estrangeiros que lutavam junto com um exército de outra nacionalidade mediante pagamento (soldo) ou a divisão dos despojos. De fato, pelo relato do caso, o termo não se aplica ao ilustre cirurgião, ele é algo muito mais baixo que isto. Qual você acha mais apropriado: abutre?!; oportunista?!

 
At 16:58, Anonymous Anônimo said...

Eu já concordo com o termo MERCENARIO, médicos fazem seu juramento para acima de tudo ter que ajudar as pessoas ( estou errado ?), Por mais que ele seja bom, conhecido, o melhor, ele esta em uma profissão em que as pessoas que o procuram estão desesperadas, claro que podemos escolher um outro médico, mas no desespero nós tentamos o "melhor", somente quem esta passando por um Tumor cerebral na familia sabe o que eu estou falando ( eu estou !!!)

 
At 12:28, Anonymous Anônimo said...

Pessoas, mercenário ou não, ele presta um serviço pelo qual vocês podem OPTAR ou NÃO. Assim, calem a boca e exerçam a sua capacidade de escolha. Ele só cobra isso porque tem gente que paga. Há centenas de outros que são mais humanos e cobram preços menores. É SÓ PROCURAR.

 
At 11:04, Anonymous Anônimo said...

É uma pena que as pessoas ainda não descobriram que o mal que fazem a outros estão fazendo a si mesmas.
Quando um médico, ciente da sua responsabilidade e do seu papel na sociedade, que tem o dever de salvar vidas pelo juramento que fez, age como se a vida humana fosse um negócio rentável, entendo que está agindo contra todos os princípios que deveria defender. Se fosse honesto se sentiria, no mínimo, envergonhado.
Mas as pessoas valorizam e até endeusam esse tipo de atitude, pois representa status. Que pena...

 
At 01:23, Anonymous Anônimo said...

Bom, Miguel, entendo a sua revolta pelo tal médico que você não divulga o nome! Sei quem é pois me identifiquei com as caracterísctas descritas, pois estou certa de que foi o mesmo que operou meu pai no dia 1o de fevereiro deste ano! Felizmente, eu discordo de você, pois ao meu ver, ele cobrou sim muito caro, um valor que somente0,002%(porcentagem ilustrativa) da população poderia pagar! Mais acho que em vez de você acusá-lo de mercenário deveria agradecer muito a Deus por poder fazer parte desta parcela que pode pagar, com muita dificuldade, óbvio, assim como meu pai que é professor universitario e ganha uma micharia! E ainda agradecer por ter iluminado as mãos deste homem Prof Dr JMR, que não fez nada sozinho, ele tem ainda uma equipe muito humana que se preocupa sim com o indivíduo paciente e com sua família. E ainda falo mais, um homem de fé e caridoso que faz um trabalho explendoroso com criancas portadoras de cancer! e você me diz que ele é mercenário? Me desculpe Miguel, Acho o seu blog fantastico e de grande valia para todos, mais nao diga isso! e SIM AGRADEÇA pelas suas VITÓRIAS, pois esse médico foi indispensavel para elas!
Passei por isso, em que me deparei com médicos que comigo nao me passaram impressao de humanidade durante o triste diagnóstico, mas em outras situações com outras pessoas, os mesmos médicos foram muitos bem elogiados! Entao é isso meu amigo, não julgue assim aqueles que Deus colocou em nosso caminho e fizeram parte de nossas vitórias!Me desculpe qualquer coisa

 
At 04:39, Blogger Monique Oliveira said...

Já no meu caso, fomos ao Albert Einstein, em São Paulo. A reputação do hospital é indiscutível. Pagamos R$550 por uma consulta. Avaliação de exames, diagnóstico, prognóstico, como mencionado pelo Miguel, foram semelhantes ao hospital em que meu pai estava.


O próprio médico nos deu os preços: "um dia na UTI aqui é R$10.000. A cirurgia R$70.000" - sem contar outros números que minha cabeça, no momento, não conseguiu processar.

Mas, a grande diferença veio quanto à análise dos tratamentos:

"Sendo sincero, a diferença não será muita. Se puderem pagar, têm a garantia que ele terá o que há de melhor disponível.

"Mas já vi, em casos como esse, a família perder tudo - e o paciente. O procedimento adotado pelo hospital está correto. Guardem o dinheiro para as conseqüências do tratamento que serão muitas."


Não quis aqui entrar numa discussão obviamente falida, de 2006, acho. Estou em julho de 2008. Mas venho adicionar informações para àqueles que resolverem ter uma segunda opinião e, como eu, acharem esse absurdo no google.

Independentemente de contestar ou não a lógica do capital -que eu tenho incontáveis ressalvas- existem campos estruturais da existência que asseguram a dignidade humana, o direito à vida. E isso é um princípio democrático.

Não vou entrar aqui na meritocracia burra e simplista de que quem tem mais dinheiro, e trabalhou por isso, merece um tratamento à altura. Nem, num outro extremo, na estatização completa da saúde.

Mas o direito à tratamento igualitário,no que concerne às necessidades básicas da vida humana, senão pelo que o mercado oferece; pelo menos, na dignidade como parâmetro para realizar essas distinções com o mínimo de sabedoria, respeitando as diferenças, e incapacidades que, de maneira alguma,TRATAM-SE DE OPÇÕES.

No fim, pode ter certeza que minha família não bateu o carro. Saímos, pelo contrário, aliviados: tanto por estarmos no caminho certo, quanto com o senso crítico necessário para fazer mudanças que nos viabilizassem continuar nele.

 

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