Domingo, 02/10/05. Devidamente convencidos pelos palpiteiros de plantão, eu e minha esposa partimos de carro para São Paulo para uma consulta no dia seguinte com o Dr. J., chefe do departamento de neurologia de uma conceituada universidade brasileira e tido como o maior especialista em cirurgia e tratamento de tumores cerebrais do tipo Glioblastoma Multiforme. Naquele dia dormimos na casa de um primo que reside na capital. Nossa consulta estava marcada para as 14hs do dia seguinte e nós levamos todos os exames feitos por meu pai durante o período em que ele esteve internado, que incluíam uma tomografia do crânio, uma ressonância magnética do crânio, uma tomografia de pulmão, ultra-som de abdômen, radiografia de pulmão e vários outros exames clínicos. Este conjunto de exames demonstrava que o tumor na cabeça não era metástase de outro câncer, mas um tumor um único e primário do cérebro.
Pouco antes das 14hs na segunda-feira, chegamos ao consultório do médico. Este consultório ficava em um prédio localizado na região da Avenida Paulista, uma área nobre e cara da cidade de São Paulo. Ao entrar no local, de certa forma, eu antevi o que nos esperava. O consultório era exclusivo do tal médico e, embora não fosse suntuoso, percebia-se facilmente uma decoração cara e requintada. O que mais me chamou a atenção foi o número de pessoas trabalhando atrás do balcão da recepção. Pude contar cinco e não sei se havia mais alguma. Tendo em vista que aquele local era apenas o consultório, este fato, que representa a abundância de recursos, já me deixou com "um pé atrás". Como de praxe nas consultas médicas particulares, paga-se antes e depois é feita a consulta. Eu paguei. Exatos R$450, isto é, mais de US$200. Acho que este valor, para uma simples consulta médica, é caro em qualquer lugar do mundo, principalmente se considerarmos que a consulta dura menos que 1h.
No momento em que falamos com a recepcionista para o fornecimento das informações sobre meu pai e o pagamento da consulta, deixamos com ela todos os exames para que o médico pudesse vê-los antes que nós entrássemos no consultório. Aguardamos cerca de dez minutos e então fomos atendidos pelo Dr. J.. Muito cordial e simpático, ele nos recebeu e, talvez por saber que minha esposa é médica, já no início da consulta confirmou o diagnóstico feito em nossa cidade. Disse-nos que aquele tumor era operável e que deveria ser extraído por cirurgia. Também confirmou a forma de tratamento pós-cirurgia indicada pelos médicos que nos atenderam inicialmente. Foi tecnicamente correto, mas de certa forma distante e frio durante toda consulta. Explicou que estava com viagem marcada aos EUA para a próxima segunda-feira e que, se nós tivéssemos a intenção de fazer a cirurgia com ele, esta teria que ser ainda durante aquela semana. Perguntamos sobre hospitais e ele nos disse que só operava em três, todos muito conceituados e caros. Perguntamos finalmente quais seriam os custos da cirurgia ao que ele nos respondeu que sobre o assunto dinheiro nós deveríamos tratar como uma assistente ou secretária dele. Nos despedimos e fomos falar com a secretária, que gentilmente nos explicou os "precinhos" de ocasião. Eles eram os seguintes: -equipe cirúrgica R$60.000; -anestesista R$5.000; hospital e UTI por nossa conta. Numa estimativa grosseira, o valor total ficaria entre 100.000 e 130.000 reais por cirurgia. Destaco que é por cirurgia, porque é comum pacientes com essa doença serem operados duas ou três vezes antes de irem a óbito.
Saímos do consultório, pegamos nosso carro e começamos a voltar para casa pensando na situação. Por mais que tentássemos, a situação toda não saia de nossas cabeças e de nossas conversas. Falamos e re-falamos cada detalhe da conversa com o Dr. J.. Se nossas análises estivessem certas. É provável que o tratamento todo tivesse um custo entre 700.000 e 1.000.000 de reais, o que é obviamente fora de nossas possibilidades, assim como das possibilidades da imensa maioria dos brasileiros. Não é de se admirar que a grande maioria das vítimas deste tipo de tumor morre.
Algum tempo depois uma luz começou a se fazer presente em nossos pensamentos: Dr. J. é um mercenário! Ele pode ser um ótimo cirurgião, mas não tem nenhum escrúpulo quando a oportunidade de explorar desesperados se faz presente. Este homem pensou, pelo fato de termos vindo de tão longe e de termos consciência da gravidade da situação, que nós éramos uma ótima fonte de receita. Avisar-nos que iria viajar e que, portanto, se nós quiséssemos, ele faria o favor de operar ainda “esta semana” me lembrou muito situações como aquelas em que um vendedor pressiona o cliente da loja dizendo que a mercadoria está acabando ou que vai subir de preço. Por outro lado, em nenhum momento ele nos assegurou um prognóstico melhor do que aquele apresentado pelos médicos de nossa cidade. Ou seja, ele confirmou o diagnóstico, confirmou o prognóstico e pediu um absurdo para fazer o mesmo que os médicos anteriores haviam dito que deveria ser feito e que não salvaria o paciente. Consciente de sua fama de bom cirurgião, tentou nos cobrar um preço espoliante para nos fornecer o mesmo que os outros ofereceriam: a morte em no máximo dois anos.
Depois de dirigir por mais ou menos três horas, paramos para comer alguma coisa e minha esposa insistiu em dirigir porque eu estava cansado e ela, que é uma boa e experiente motorista, preferia dirigir no trecho de estrada dupla que ainda restava. Quando chegássemos aos duzentos quilômetros finais, que são de pista simples, eu, já mais descansado, pegaria a direção novamente para terminar a viagem.
Voltamos à estrada sem, em momento algum, deixar de considerar e reconsiderar cada aspecto envolvido do tratamento e especialmente a experiência que tivemos com o Dr. J.. Aquilo foi nos exaurindo, cansando ao extremo. Uma hora e meia mais tarde, logo depois de entrarmos no trecho da estrada que é de pista simples e onde o tráfego de caminhões é intenso, falei para minha esposa que parasse assim que possível, para que eu assumisse a direção. Não deu tempo. Sem se aperceber do que estava fazendo, em uma curva, por causa da estrada muito mal demarcada, ela mudou de faixa passando a trafegar pela pista oposta. Eu notei e comecei a gritar: “olhe o caminhão”, “olhe a carreta”. Estávamos indo de encontro a um caminhão, que sinalizava com a luz alta incessantemente. Minha esposa não conseguia ver, embora fosse evidente, evidente demais! Aquela situação durou uns poucos segundos e, quando estávamos a uns 20 metros da colisão frontal, ela “voltou a si”, fez um movimento brusco com a direção para a direita, nos tirando da rota de colisão. O carro quicou à direita, depois à esquerda e novamente a direita, cruzamos a frente de dois veículos que vinham atrás de nós e saímos pelo acostamento indo bater em um bambuzal. Quando paramos e ao nos darmos conta do que havia acontecido e verificarmos que não tínhamos nenhum ferimento grave ou evidente, eu pensei comigo: “-um mercenário quase nos matou.” Quase que meu pai, em sua condição terrível é obrigado a nos enterrar. Quase que meus três filhos ficam órfãos, de pais e de avós.
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A descrição acima pode parecer exagerada ao qualificar o aquele médico como mercenário, mas realmente não é. Só para que se tenha uma idéia, o custo total da cirurgia, com equipe, anestesista e hospital, ficou em 13000 reais e o resultado, que foi avaliado pelos especialistas em radiologia, é, dentro do possível, extremamente satisfatório.